Klester Cavalcanti lança obra sobre dias de terror na Síria
Algumas situações na vida servem para tornar cargos, roupas, raça,  religião - e outros meros detalhes que o dia a dia insiste em enaltecer -  simplesmente irrelevantes. Algumas situações têm o poder de despir,  embranquecer currículos e posturas sociais. Uma delas, seria o chão sem  reflexo de uma cela. Foi assim, em uma prisão na Síria, que o jornalista  pernambucano Klester Cavalcanti se encontrou, ao dividir um cubículo  com outros 20 presos, todos muçulmanos, marginalizados pela guerra civil  que assola o país e estarrece o mundo. Assusta em números - cerca de 60  mil mortos desde março de 2011 - e, hoje, para Klester, assusta em  nomes. "Eu não consigo ver uma matéria e pensar que morreram tantos.  Penso nos meus amigos, nas pessoas que foram generosas comigo", conta o  autor do livro Dias de inferno na Síria.
"Klester, como você  está?", falava, num inglês com sotaque pesado, alguém do outro lado da  linha, alguns meses depois do jornalista ter voltado ao Brasil. Klester  viajou à Síria, enviado pela revista IstoÉ, no dia 19 de maio do ano  passado, na época com 42 anos. Lá foi preso e libertado uma semana  depois. "É Ammar, da ‘Xúria’ (sic)", se identificava um dos seus  companheiros de cela ou "irmão", nas palavras do autor. "Eu quase tive  um piripaque. Ele me contou que tinha saído da prisão, que estava feliz,  não tinha para onde ir, mas estava livre de novo", lembra.
Por  saber falar inglês, Ammar fez as vezes de tradutor entre o jornalista e  os demais presos da cela. A cobertura que faria da guerra ganhava outra  perspectiva. Assim como vários outros, a guerra transformou Ammar em  criminoso. Quando o conflito começou, a loja de roupas do sírio faliu.  Para seu ganha-pão, Ammar ia para o Líbano comprar cigarros, para vender  em Homs, epicentro da guerra civil. Numa das viagens, Ammar foi pego e  posto na cela para prisioneiros não perigosos, junto a Klester.
"Existe  a visão de que o muçulmano é doido, terrorista. Fiquei preso com mais  de 20 e fui respeitado, bem tratado. Sem nenhuma poesia, eu dou a vida  por esses caras", diz. "Quando eu estava muito angustiado, eles faziam  palhaçadas, tinha um que imitava o Michael Jackson. Se não fosse eles,  eu teria ficado louco", completa.
A ideia inicial do jornalista  quando foi à Síria era chegar a Homs, uma cidade de 1,8 milhão  habitantes. Klester queria fazer uma reportagem sobre como é a vida das  pessoas à margem do conflito, o que pensam, quem são elas, se vão ao  teatro enquanto seus vizinhos morrem. Ele queria humanizar o conflito  entre as forças do ditador Bashar Al-Assad e os rebeldes da Primavera  Árabe.
Mesmo depois de conseguir o visto para estar no país,  Klester ignorou a orientação de ir ao Ministério da Informação, em  Damasco, a capital, antes de começar a peregrinação na Síria. "Se eu  fosse, eles jamais me permitiriam que eu seguisse para Homs. A única  coisa que eu fiz foi isso, ter ido para Homs, onde você consegue ver as  atrocidades que o governo está fazendo. Lógico que eles não querem que a  gente veja isso. Mas acabou que a prisão me deu esse material  riquíssimo", conta.
A obra não tem o tempero a que o leitor está  acostumado nas histórias de prisão, principalmente no que deve imaginar  ao ver - nos meios de comunicação - as imagens da Síria: torturas  truculentas. O jornalista foi ameaçado por canos de fuzil no pescoço e  teve seu rosto queimado por um cigarro. Fora isso, a essência do livro  está nos protagonistas da guerra, Ammar e tantos outros homens que  tentam fugir das estatísticas. Um convite a pensar nos permanecem  trancados. Aquele cujas circunstâncias insistem em torná-los, como  descreve Graciliano Ramos em Memórias do cárcere, "fantasmas prematuros,  farrapos vivos".
"Eu cresci aqui no Recife, indo à praia de Boa  Viagem. É muito doido para mim ficar preso, sem fazer nada, nem um  telefonema. E eu me peguei um dia sentindo algum prazer, do corredor da  prisão, ao ver um pouquinho do céu azul", conta ele.
Klester foi o  único jornalista estrangeiro a chegar em Homs. No dia que foi solto,  108 pessoas foram mortas em um chacina em Houla, interior do país.  Dessas, 49 crianças e 23 mulheres. Na mídia internacional, sobreviventes  relataram que se salvaram por se fingirem de mortos. "O meu terror  chegava ao fim. O da Síria, não", escreve o repórter, duas vezes  vencedor do Prêmio Jabuti.
Serviços
Klester faz palestra, nesta segunda, às 9h30, na Aeso (Av. Transamazônica, 405, Jardim Brasil II, Olinda) e lança o livro às 19h no auditório G2 da Universidade Católica, na Boa Vista
 
          