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Amaro Freitas, o pianista recifense que ganhou o mundo ao unir jazz e cultura popular nordestina



Músico tem sido elogiado por importantes revistas internacionais e realizado shows casas como a Ronnie Scott%u2019s, templo do jazz em Londres

Rasif é um termo de origem árabe cujo significado é “mar que arrebenta”. No dialeto lusitano, transformou-se em “recife” e, desde então, tem sido gancho de obras artísticas, a exemplo do livro homônimo do pernambucano Marcelino Freire. Também inspirou o título do segundo disco do pianista recifense Amaro Freitas, lançado pelo selo inglês Far Out Records no ano passado. O trabalho instrumental arrancou elogios de importantes revistas de jazz internacionais, a exemplo da Downbeat, e estimulou a realização de uma série de shows no exterior, passando por casas como a Ronnie Scott’s, o templo do jazz em Londres. A turnê chega no Recife nesta sexta-feira (26), às 20h30, no Teatro de Santa Isabel.

“Eu compus esse álbum pensando na onda que vem e quebra nas pedras e nos arrecifes. Quando isso ocorre, emerge um som de polirrítmico distinto. A onda pode quebrar cheia, pela metade ou não quebrar”, explica Amaro Freitas, de 27 anos, em entrevista ao Viver. O descompasso das ondas é, realmente, uma ótima metáfora para entender a identidade deste artista. Ele tem se destacado por criar reinterpretações instrumentais de ritmos da cultura popular do Nordeste, como frevo, maracatu, ciranda, baião e coco.

Isso tudo aparece sob uma ótica do jazz experimental, algo que nos remete a nomes como Hermeto Pascoal, Moacir Santos e Craig Taborn. Os críticos internacionais ainda o compararam ao suíço Nik Bärtsch e ao trio do norte-americano Matthew Shipp. Amaro tem dado vida a uma sonoridade original que surpreende pela imprevisibilidade, agilidade, hipnotismo e outros elementos que encontramos nas ondas marítimas, mas com padrões matemáticos que só são possíveis pelo talento de um exímio músico.

“Geralmente, os ritmos pernambucanos e brasileiros são tocados em compassos binários. Eu coloquei compassos quádruplos, deixando tudo mais acelerado”, diz Freitas, que gravou o álbum ao lado de Jean Elton (baixo e acústico) e Hugo Medeiros (bateria) e contou com participação especial de Henrique Albino (flauta, saxofone e clarone). “Levei isso para o estúdio junto com minhas vivências, já que cada música diz respeito a uma temática.”

Dona Eli, faixa inaugural que reinterpreta um baião, é homenagem a uma mulher que preparava um ótimo baião de dois. Trupe é uma ode ao coco de Arcoverde, no Sertão. “O coco tradicional tem uma ou duas notas fortes, que aparecem e desaparecem. Eu fiz essa música com todas notas fortes. Peguei essa célula rítmica e criei uma linha artéria, pensando como poderíamos criar uma sonoridade próxima do coco”. Já Aurora, ele define como uma “suíte de três momentos”, que narra o dia amanhecendo, esquentando e depois indo embora. Plenitude aborda o luar sob uma atmosfera misteriosa.

TRAJETÓRIA
Quem vê Amaro Freitas tocando em clubes de jazz como o Duc de Lombards (Paris), Unterfahrt Jazz Club (Munique) e Casa da Música (Porto) se questiona como o músico encontrou essa sonoridade tão singular. Também desperta admiração como um rapaz negro, natural de Nova Descoberta, subúrbio da Zona Norte do Recife, chegou em tal patamar - e com ambição de prosperar cada vez mais. Ambas as perguntas podem ser decifradas ao analisar como ele se desenvolveu com a música, longe do crivo eurocêntrico de universidades e cursos conservados por uma elite tradicional pernambucana.

Foi em uma igreja evangélica seus primeiros contatos com os teclados. Seu sonho era tocar bateria, instrumento mais cobiçado pelos jovens que se envolviam com a banda. A sugestão para manejar as teclas veio de seu pai, quando ele ainda tinha 12 anos. Amaro se trancou no quarto e encarou o conjunto de 61 teclas como um desafio. “Cheguei a frequentar o Conservatório de Música, mas não pude continuar, pois minha família não tinha dinheiro para manter. Aos 18, comecei a trabalhar em um call center enquanto tocava em casamentos, bailes, restaurantes e bandas mais genéricas".

Com renda própria, ingressou no curso de harmonia da Tritonis Ensino de Músicas Contemporânea, de Thales Silveira, e depois no de Produção Fonográfica da Aeso Barros Melo. Depois disso, surgiu o álbum Sangue negro (2016), feito com produção do gaúcho radicado carioca Rafael Vernet, com mixagem de Paulo Germano e masterização do Carranca. O disco fez o pernambucano vencer o Prêmio Instrumental do festival Mimo em 2016 e ser uma presença ilustre no álbum Em trânsito (2017), de Lenine.


“O Sangue negro já trabalhava ritmos afro-brasileiros com instrumentos eruditos, mas de uma forma mais tradicional. Representou um momento de minha vida, quando ainda estava procurando uma linguagem clássica ideal.” O êxtase artístico dentro dessa proposta chegou em Rasif, que tem feito Amaro rodar o mundo por exaltar suas raízes.

Na década de 1950, os cariocas João Gilberto e Tom Jobim uniram samba e jazz, evocando um som que até hoje nos remete ao Corcovado, ao Pão de Açúcar e à Praia de Copacabana como a vitrine do Brasil. Amaro Freitas desloca essa territorialidade sonora para o Sítio Histórico de Olinda, o Sertão do Moxotó e o Parque das Esculturas de Francisco Brennand, onde as ondas arrebetam nas pedras infinitamente. É de Pernambuco que emana a renovação do jazz contemporâneo brasileiro.

ENTREVISTA - AMARO FRETITAS - PIANISTA

De onde veio essa ideia de dar uma leitura erudita para ritmos afro-brasileiros nordestinos?
Hoje existe um movimento do piano contemporâneo que é mundial. Minha cabeça é muito atrelada ao que está acontecendo fora do Brasil. Existe uma energia mundial que acaba contagiando a todos, sendo a marca desse tempo que a gente vive. É uma parte cerebral da música que dá origem a um piano percussivo, muito mais percussivo do que harmônico. Isso está acontecendo em países como Cuba, com Gonzalo Rubalcaba, e nos Estados Unidos, com Craig Taborn e Cecil Taylor.

Acredita que não ter ingressado, desde cedo, em cursos tradicionais de música erudita também o influenciou nesse estilo?
Sim, pois trago para o erudito todas as referências que tive em Pernambuco, mas referências de outras realidades que não são aquelas ensinadas na universidade. Eu nunca quis ir para UFPE, porque iria estudar a música do século 17 da Europa. Se um europeu chegar no Recife e quiser aprender a música daqui, ele vai se deparar justamente com a mesma que ele aprende lá. Por que não levar o afro para dentro das salas de aula? Lá fora tem muita gente fazendo isso, de conservar os ritmos africanos e de observar esses fenômenos afro-americanos. O próprio jazz faz parte dessa tradição, mas agora existem outras pessoas pensando nessa força percussiva de acordo com a tradição de seu país.

Talvez não tenha sido justamente esse diferencial que tenha despertado atenção no exterior?
Depois que Rasif saiu por um selo britânico, a minha produtora (78 Rotações) conseguiu fechar uma agenda maravilhosa na Europa. Eu fiquei muito surpreso com os lugares cheios. Na Alemanha mesmo, um lugar tão frio, as pessoas poderiam ter um comportamento mais sério. Mas elas piraram. Eram pessoas de 50, 60 anos que me pediram bis quatro vezes! As pessoas não conhecem essa música pernambucana presente do meu jazz. O que foi disseminado do Brasil lá fora foi a bossa nova e o samba jazz.

Por apostar no potencial afro-brasileiro, acredita que seu trabalho acaba tendo um cunho político ou social?
Uma das minhas maiores preocupações é levantar a bandeira, em vez de colocá-la na frente. Meu povo sofreu muito e tenho total consciência disso, mas quero que as pessoas escutem a minha música porque sou inteligente e sei o que estou fazendo. Com certeza existe um lado muito político no meu trabalho, basta ver o título de Sangue negro. Eu quero provar para as pessoas de periferia que amam a música que dá para você crescer se acreditar, com trabalho. É preciso que a gente dê o nosso passo. Eu mesmo quero muito ser alguém, ter um nome e inspirar outros. No show que fiz no Rec-Beat no carnaval deste ano, vi muita gente de Nova Descoberta. Um baiano me mandou uma mensagem dizendo que ficou feliz, porque além de gostar da música, eu também sou negro e nordestino. Isso é motivo de orgulho.

Então essa é sua perspetiva para o futuro? Crescer e inspirar?
Sim, o cara de Nova Descoberta que se tornou uma revelação do jazz internacional sem precisar ter ido para o Sudeste. Tenho uma agenda cheia até o final do ano. Isso dá uma esperança para os outros. Quando surgir um patrocínio maior, gostaria de fazer oficinas e mostrar para a periferia que a música é um caminho. Não adianta levantar bandeira se você não quer passar o conteúdo, mas sim apenas “surfar na onda”.

Serviço
Amaro Freitas em Rasif
Onde: Teatro de Santa Isabel (Praça da República, s/n, Santo Antônio)
Quando: nesta sexta-feira (26), às 20h30
Quanto: R$ 60 e R$ 30 (meia), à venda nas lojas Latam e site Bilheteria Virtual
Informações: 3355-3323

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